quarta-feira, 5 de maio de 2010

2.4 – A construção do Convento

Os Arrábidos, D. João V e o Cardeal

O projecto inicial do Convento previa só “um pequeno cenóbio de 13 frades” (Júlio Gil), isto é, uma construção muito modesta que se enquadrava perfeitamente nos austeros hábitos da tradição arrábida.

As palavras que se transcrevem a seguir são da autoria de José Fernandes Pereira, no capítulo sobre “O barroco no século XVIII”, da História da Arte Portuguesa, do Círculo de Leitores[1]; paga a pena lê-las:

“Por tradição e pelos estatutos, os Arrábidos aceitavam, por esmola, novos conventos desde que fossem os frades a dirigir a sua construção que, em nenhum caso, poderia fugir duma tipologia e de um carácter de simplicidade e pequenez há muito tipificado. Ora o alvará de 1714 revela sibilinamente que a obra a erguer em Mafra seria régia, controlada desde Lisboa pelo rei e que aos frades competia apenas aceitar o presente, ainda que envenenado.

Fá-lo-ão com pouca convicção e após parecer jurídico do arcipreste da Patriarcal de Lisboa, expresso em 1730, e segundo o qual os Arrábidos podiam sem escrúpulo aceitar obra tão luxuosa para a qual a ‘Real Magnanimidade’ não tinha sequer de lhes pedir consentimento”.

Esta seriedade dos Arrábidos ao verem ser subvertido o seu projecto deita por terra muita da chocarrice de Saramago e mostra que ao tempo as ordens religiosas não estavam mergulhadas na devassidão que ele gostaria de lhes atribuir – mas que parece que lhe não atribui, ao menos dum modo generalizado (não a atribui aos Jesuítas nem aos Arrábidos, por exemplo).


A construção do Convento

Saramago cuida de lembrar que na construção do convento houve muitos feridos e mortos, sem dizer quantos ou uma aproximação.

É provável que a média dos mortos não fosse muito diferente da de outras obras europeias de grande envergadura (Versalhes, Ermitage, Escorial, etc.); aliás a construção civil ainda hoje é uma actividade com mortes frequentes. Uma obra em que as mortes tiveram dimensão de hecatombe foi o Canal de Suez: 125.000! Teriam lá trabalhado 1.500.000 homens[2].

E a nação construtora, a Inglaterra (em parceria com a França), era a mais rica e desenvolvida do Planeta, e sobre a data da construção do Convento de Mafra já tinha passado mais de um século (e não um século qualquer, mas um século de desenvolvimento tecnológico pronunciado).

O gosto que Saramago manifesta em descer ao pormenor quase individual faz sentido na monografia, mas não numa história do País…

Observe-se que no fim de se ler o romance não se vê elna justificação para o seu título.


O que não coube no Memorial…

José Saramago pelos vistos algo sabe de crítica de arte arquitectónica, mas isso não o ficamos a conhecer pelo Memorial do Convento. Realmente, não há lá uma palavra sobre a magnificência da obra realizada. Não há lá umas palavras que fossem sobre aquela grandiosa fachada, sobre a esplendorosa basílica, sobre as belíssimas imagens… E parece que o título prometia isso: dum memorial, esperava-se que não ficasse de fora o melhor do Convento…

E o pior é que isso está certo, pois destoaria de tal forma do conteúdo tão mesquinho do romance que o desacreditaria.

O Convento de Mafra, que durante décadas se apresentou muito descuidado e sujo, foi recentemente limpo por fora e oferece hoje um espectáculo de grandiosidade que não se conhecia antes.


Ilustração 10 A belíssima e policromada cúpula da Basílica.

“Uma obra-prima de arquitectura, o monumental zimbório eleva-se sobre o tambor onde se rasgam amplas janelas em intercolúnios coríntios rematados por frontões encurvados; da robusta estrutura vertical partem apoios ressaltados da calote que vão unir-se ao anel base do elegante lanternim francamente aberto à luz”. (Júlio Gil)


A estatuária de Mafra

Saramago trata muito mal a estatuária de Mafra. Melhor, trata-a no seu baixo estilo de chacota. Por isso transcrevemos para aqui um parágrafo da já citada História da Arte em Portugal, do Círculo de Leitores[3]:

"E no entanto, pese embora a dimensão da encomenda e o número de escultores, para além das naturais diferenças qualitativas, a escultura de Mafra apresenta uma espantosa unidade: processual, compositiva e expressiva. Que melhor prova do férreo poder do encomendador (D. João V) que reduziu os escultores italianos a pouco mais que mão-de-obra? A repetição do cânon (1:7,5), a utilização dum único bloco matérico, uma pose onde a estabilidade substitui o clímax e o particular (circunscrito no tempo e no espaço) é substituído pela universalidade duma «história», a gestualidade desprovida em grande parte de capacidade de diálogo retórico, a intemporalidade dos rostos, o peso (real e virtual) das vestes, a obsessiva importância assumida pelos objectos iconográficos – eis, em suma, alguns dos mais importantes e constantes valores artísticos presentes em Mafra em resultado, repetimos, de um a troca cultural luso-italiana. Na verdade, para ao adeptos da nacionalidade das obras de arte, convirá pensar que não são apenas os artistas que a determinam”.


O Convento de Mafra na “Viagem a Portugal”

É clamorosa pela sua pobreza a curta notícia que Saramago dá do Convento de Mafra no livro Viagem a Portugal. Como isso nos parece visível a olho nu, aqui deixamos o começo dela:

“O Convento de Mafra é grande. Grande é o Convento de Mafra. De Mafra grande é o Convento. São três maneiras de dizer, e podiam ser algumas mais, e todas se podem resumir desta maneira mais simples: o Convento de Mafra é grande. Parece o viajante que está brincando, porém o que ele não sabe é pegar nesta fachada de mais de duzentos metros de comprimento, nesta área ocupada de quatro mil metros quadrados, nestas quatro mil e quinhentas portas e janelas, nestas oitocentas e oitenta salas, nestas torres com sessenta e dois metros de altura, nestes torreões e neste zimbório”.


Em comentário a estas considerações criticamente ocas, colocamos porém aqui algumas frases dum especialista de arte arquitectónica, no prefácio do livro Os Mais Belos Palácios de Portugal[4]. Escreve ele:

“Porém, a realidade portuguesa deixa-nos bastante à margem desse risco de nos sentirmos perdidos em salões imensos, buscando neles um cantito discreto e acolhedor que possa ser bem nosso, se nos tornarmos donos e senhores de algum palácio por acaso…


Talvez por sermos avessos à grandeza desmedida, os nossos casos de monumentalidade grandiosa são raríssimos e, pode dizer-se, «compreensíveis». Os palácios portugueses foram construídos para homens, não para super-homens ou semideuses.

Refere Nikolaus Pevsner que no colossal palácio de Blenheim, obra de Jacob Vanburg, a cozinha ficava tão longe da sala de jantar que «os pratos quentes arriscavam-se a arrefecer antes de chegar ao seu destino» (…)”.

Da Viagem a Portugal há duas edições, a primeira sem ilustrações, a segunda ilustrada; mas, mesmo na segunda o Convento não merece uma imagem. Como pode ser isso se está em causa o maior monumento do nosso Barroco?

Saramago reagiu mal à magnificência e à arte de Mafra.


[1] Direcção de Paulo Pereira, 1995, 3º volume, pág. 61.

[2] 21 Maravilhas à volta do Mundo, 16, Egipto Pirâmides de Gizé, Tugaland Edições, Lisboa, 2007, pág. 24. Veja-se ainda esta notícia de 28 Outubro de 2008:

“Os acidentes de trabalho têm sido responsáveis, anualmente, pela morte de cerca de 170 mil trabalhadores na União Europeia. As conclusões surgem de um relatório recente da Autoridade para as Condições de Trabalho que refere que a construção civil é o sector que regista mais mortos, adianta o Rádio Clube.

O coordenador executivo da Autoridade para as Condições de Trabalho, Luís Lopes, salienta também que «os acidentes de trabalho fazem mais mortos do que qualquer guerra», e acrescenta que tal seria possível evitar, se as empresas e trabalhadores cumprissem a legislação” (verifique aqui).

[3] Volume III, pág. 94.

[4] Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 1996.

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