quarta-feira, 5 de maio de 2010

2 – Temas para desenvolvimento

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2.1 – A Lisboa barroca e D. João V


Sobretudo nas páginas iniciais do romance, Saramago faz a caricatura de Lisboa, no pior da sua face absolutista e barroca Pós-Restauração. A cidade não era certamente assim, mas o país, esse era diferente. Os documentos contemporâneos negam tal imagem. As pessoas que os escreveram não eram loucas, com toda a segurança não padeciam daquela paranóia geral[1].

E isto é importante que se diga, porque elas eram tão inteligentes como as de hoje, como Saramago e nós.

Quando ele diz de Lisboa que era uma pocilga (… “este corpo parco e porco da pocilga que é Lisboa”, cap. III), convém saber que até nos concelhos rurais havia exigências de asseio com os caminhos[2]. Em Lisboa não haveria qualquer exigência prática de asseio nas ruas? Atolar-se-iam todos na lama e na imundície?

Ilustração 2 Retrato do jovem D. João V

Ao lado da imundície física, depreende-se da narrativa que alastra na cidade uma podridão moral funda e geral. Nem Fernão Lopes, nem Gil Vicente, nem o P.e António Vieira, nem Bocage, nem Eça de Queirós, nem Fernando Pessoa tinham visto a cidade assim.

N’Os Maias, Eça apressava-se a chamar beata a qualquer mulher honesta[3]; Saramago vai mais longe: não há beatas nem honestas, só devassas… E devassos. Vista de lince. Ou talvez melhor: “cada um fala da feira conforme lhe vai nela”.

Num conhecido prefácio ao Amor de Perdição, Camilo, contra os realistas, fala num certo pudor em penetrar dentro das alcovas. O materialista Saramago não se tolhe com essas limitações; entra nas alcovas, vê os corpos, os gestos, os líquidos, numa impertinência e indiscrição devassadoras e maniqueias, a duas cores: nuns casos só há coisas apreciáveis, noutros só detestáveis.

Mas é nessa estrumeira de Lisboa que, por obra de Saramago, medra a bela e inesperada flor que é a virginal Blimunda, que aliás, insensatamente, se entrega a um homem de quem apenas sabe o nome[4].


D. João V, “um dos maiores reis da História portuguesa”

A perspectiva tão negativa que Saramago dá de D. João V no romance está muito longe de colher a unanimidade dos historiadores.

Segundo a História de Portugal de Joaquim Veríssimo Serrão, “(…) não pode hoje manter-se a concepção do rei (D. João V) esbanjador de riquezas, como ainda por vezes se encara esse período de governo; nem tão-pouco a do rei «freirático», passando o tempo em conventos, dado a orgias e a uma vida afastada do ofício de reinar. (…)

O visconde de Santarém traçou este juízo modelar: «Quaisquer que sejam os defeitos que se possam notar neste Príncipe como homem, estes não pertencem à história, à qual só compete examinar as acções públicas e não os actos da vida privada, demais que não foram eles de tamanha gravidade, nem influíram na direcção dos negócios públicos». (…)

A posição cimeira que ocupou na política europeia do tempo; o culto pessoal como meio de fortalecer os direitos da coroa; os cuidados postos na administração ultramarina, adivinhando sobretudo o crescente potencial do Brasil; a obra de cultura e o mecenato das Letras e Belas-Artes a que ligou o nome – tudo concorre para fazer de D. João V um dos maiores reis da História portuguesa.”[5]

Este modo de avaliar D. João V difere pouco do que se pode ler na Enciclopédia Verbo; o artigo que lá vem é um louvor quase continuado ao Magnânimo.

Se nem todos o avaliam assim, reconheça-se ao menos que a excelência artística do Convento de Mafra muito lhe deve.


Ilustração 3 D. Maria Ana de Áustria.

Convém reter que, se até ao voto de erguer o Convento o Magnânimo não conseguira ter filhos da rainha D. Maria Ana de Áustria, depois teve vários, o que dá força à afirmação do carácter miraculoso do nascimento do primeiro. Esta rainha era uma mulher culta, que sabia, além do alemão e do português, francês, italiano, espanhol e latim. Entre a realidade histórica e a chacota de que é alvo no romance deve mediar um abismo.

A filha mais velha do casal, Dona Maria Bárbara de Bragança, foi uma excelente rainha de Espanha, “discreta e eficaz”.

“A jovem princesa das Astúrias era uma mulher culta, agradável, fluente em seis línguas e grande amante das Belas-artes, em especial a música. D. Maria Bárbara e D. Fernando eram realmente apaixonados um pelo outro”.

“Sabe-se que até a própria D. Maria Bárbara compôs sonatas para uma grande orquestra”.

“Sua morte provocou a loucura de Fernando VI, que morreu no ano seguinte”. Wikipédia


Ilustração 4 D. Maria Bárbara de Bragança, a culta filha de D. João V que fez um casamento de inteiro sucesso: o marido enlouqueceu quando ela morreu.


[1] Conhecemos centenas de documentos do séc. XVIII, dezenas deles da sua primeira parte.

[2]Veja-se este “costume antigo” do regimento dum concelho rural, passado a escrito em 1743:

“É costume muito antigo fazerem toda a justiça deste couto Juiz, Verea­dores e Procurador e mais oficiais com o escrivão. Fazerem duas correições todos juntos, cada uns em seu ano, a saber, uma em Janeiro e outra em o mês de Maio, ver caminhos e tapagens e vergas das veigas, como também as vendas, açougue e moendas, para que tudo esteja capaz e bem asseado (…)”. Títulos e Acórdãos do Couto e Honra de Fralães, Arquivo Municipal de Barcelos.

Os juízes destes concelhos acumulavam às competências judiciais as competências dos actuais presidentes da câmara.

[3] Isto é principalmente evidente na primeira metade do romance.

[4] A figura de Blimunda não interessa directamente ao nosso tema, mas observe-se que o facto de ser aparentemente estéril é muito cómodo para os fins de Saramago. Se o casal criasse família, seria obrigado a uma inserção muito maior no tecido sócio-religioso do tempo e não ficaria mais naquele jeito de amor e uma cabana.

[5] Editorial Verbo, 2ª ed., vol. V, pp. 272-273.

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Lisboa barroca

25/11/2010

Afinal, quem é que fala verdade? Um vídeo do Público de hoje mostra-nos uma Lisboa barroca que não tem nada a ver com o que Saramago descreveu...

J.F.

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